A fome não é um destino inevitável, mas escolha política

A fome não é um fenômeno natural, mas um reflexo de escolhas políticas e econômicas. No Brasil, a coexistência de um agronegócio influente e milhões de pessoas em insegurança alimentar é a prova certa de que o sistema alimentar atual é falho e excludente. Diante desse cenário, iniciativas como as Cozinhas Solidárias surgem como um ato de resistência e um farol de esperança, mas não podem ser vistas como solução definitiva.

Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) revelam que, em 2022, 33,1 milhões de brasileiros viviam em situação de insegurança alimentar, ou seja, não tinham acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Este número representa um aumento significativo em relação aos anos anteriores e evidencia o agravamento da crise alimentar no país.

O papel da ciência e da sociedade civil

A ciência e a sociedade civil têm um papel fundamental na construção de um sistema alimentar mais justo e sustentável. Pesquisas como as realizadas pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (NUPENS/USP) são essenciais para entender as causas da insegurança alimentar e seus impactos na saúde da população, fornecendo subsídios para a formulação de políticas públicas mais eficazes.

A sociedade civil, por sua vez, tem se mobilizado para denunciar as desigualdades do sistema alimentar, promover a agroecologia e a soberania alimentar, e pressionar o governo por políticas públicas que garantam o direito à alimentação adequada para todos. Iniciativas como o Observatório Brasileiro de Conflito de Interesses em Alimentação e Nutrição buscam monitorar e denunciar a influência da indústria alimentícia na formulação de políticas públicas, contribuindo para a construção de um sistema alimentar mais transparente e democrático.

As Cozinhas Solidárias

As Cozinhas Solidárias representam uma resposta comunitária à crise alimentar. Inspiradas por movimentos globais e iniciativas locais, essas cozinhas são espaços onde alimentos são preparados e distribuídos gratuitamente para quem precisa. Elas não apenas combatem a fome, mas também promovem a inclusão social e a solidariedade comunitária. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já distribuiu milhões de refeições desde sua criação, mostra a força das ações coletivas na mitigação da fome.

Outros exemplos nacionais, como as iniciativas apoiadas pelo Fundo Podáali e o Plano Estratégico de Transição para a Agricultura Regenerativa Orgânica em Lagoa do Sino, entre outras organizações da sociedade civil, mostram que é possível promover a soberania alimentar indígena e de outras comunidades tradicionais através de modelos participativos e sustentáveis. Elas oferecem um espaço de acolhimento e convivência, onde as pessoas podem compartilhar suas histórias, trocar experiências e construir redes de apoio mútuo.

A consolidação de experiências institucionais é essencial para combater o conflito de interesses em alimentação e nutrição. O Congresso Brasileiro de Nutrição (Cobran) 2024 destaca a importância de criar um ambiente livre de influências corporativas para garantir que políticas alimentares sejam focadas no bem-estar público. O evento tem sido fundamental para discutir como as políticas alimentares podem ser moldadas para servir melhor a população, eliminando influências que comprometem a saúde pública.

Desafios para a soberania alimentar

Apesar dos avanços representados por essas iniciativas, a construção desse sistema ainda enfrenta muitos desafios. Um dos principais é o acesso à terra, que se torna cada vez mais difícil para pequenos agricultores e comunidades tradicionais devido à concentração fundiária e à expansão do agronegócio. O Fundo FICA tem promovido discussões sobre formas de incentivar e proteger os bons usos da terra a longo prazo, destacando a importância de políticas agrárias que favoreçam pequenos produtores e comunidades tradicionais.

Outro desafio é o combate aos lobbies da indústria alimentícia, que influenciam a formulação de políticas públicas e a regulação do setor, muitas vezes em detrimento da saúde da população. Investigações do The Intercept Brasil revelaram que a indústria de alimentos utiliza táticas de desinformação e manipulação para promover seus produtos e interesses, mesmo quando estes são prejudiciais à saúde pública. O material do Intercept detalha como essas empresas financiam pesquisas que minimizam os impactos negativos de seus produtos e fazem lobbies agressivos para impedir regulamentações mais rígidas.

Política-eleitoral

No dia 11 de junho, pré-candidatos e movimentos sociais se reuniram em uma oficina online para discutir o combate à fome e a segurança alimentar nas eleições municipais de 2024. O evento contou com a participação de lideranças como Eró Silva, do MST, Kiko Afonso, da Ação da Cidadania, Wesley Teixeira, da Coalizão Negra por Direitos, e a Bancada das Mulheres Amazônidas. Durante a oficina, foram debatidas propostas e diretrizes para a elaboração de programas eleitorais, com foco em ações inovadoras e eficientes para enfrentar a fome nas cidades.

A dinâmica da oficina incluiu uma rodada de falas iniciais dos expositores, seguidas por um diálogo aberto com os participantes, onde foram compartilhadas propostas e questões pertinentes. As perguntas orientadoras foram “Quais são os focos prioritários para a ação nas cidades em um ano de eleições municipais?” e também “Quais são as boas práticas e referências de administrações municipais inovadoras na agenda de combate à fome e segurança alimentar?”

Após reflexões, juntamente com participantes da Rede Ypykuéra, as lideranças reforçaram a importância de incluir nas agendas públicas o campo de sistemas alimentares e combate à fome, pela defesa de um projeto de país que coloque a alimentação como um direito humano fundamental, e não como uma mercadoria. 

Enquanto isso, o eleitorado deve estar atento a propostas que visem fortalecer a agricultura familiar, promover a agroecologia e assegurar a distribuição justa de alimentos. Temos provas dentro de “nossas casas” de que políticas que garantam o acesso à terra para agricultores familiares e comunidades tradicionais são essenciais para construir um sistema alimentar eficaz.

artigo publicado no Brasil de Fato

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