Bons exemplos de políticas para APS abundam pelo Brasil. Envolvem estratégias de expansão da cobertura, valorização dos agentes de saúde e parcerias com universidades. Seu sucesso deve inspirar prefeituras surgidas do próximo ciclo eleitoral
As eleições municipais de 2024 se aproximam, e com elas, a oportunidade de debater e definir o futuro das cidades brasileiras. Mais do que um direito fundamental, o acesso à saúde de qualidade é um investimento no bem-estar da população e no desenvolvimento sustentável do país.
No Brasil, a segunda metade da década de 1980 foi marcada por uma série de experiências que fizeram gradualmente avançar uma reforma do sistema de saúde brasileiro em parte como fruto de um processo histórico cumulativo, sob as bases de um sistema brasileiro de saúde renovado, que se implantariam iniciativas em diálogo direto com a APS nos municípios do país. Destacaram-se a implementação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991; e a criação do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1994, que mais tarde viria a se consolidar como estratégia orientadora do sistema de saúde.
Nesse contexto, experiências progressistas em cidades como Rio de Janeiro e Niterói oferecem modelos concretos de como políticas públicas eficazes podem transformar realidades.
Rio de Janeiro: Expansão da ‘Estratégia Saúde da Família’ e seguimento de uma agenda global para saúde
Historicamente, o Rio de Janeiro ocupa um lugar de destaque nacional em diversas políticas, com um abrangente número de estratégias de diferentes governos experimentadas em seu território, e no setor saúde não seria diferente. Tendo sido capital do país por quase dois séculos, o município conta com uma série de especificidades, tais como as unidades de saúde, que chamam atenção por suas construções, que datam do período colonial. Isso garantiu a conformação de uma expressiva rede de serviços de saúde, em especial hospitais. Esses serviços, que ainda hoje representam um desafio em aspectos de capacidade de gestão e articulação em rede entre os diferentes níveis de atenção, compõem parte fundamental da rede de saúde no município do Rio de Janeiro.
Na cidade, a década de 1990 foi caracterizada por diferentes governos municipais, o que nos dá a dimensão da complexidade dos processos políticos que ocorreram durante o período na cidade, incluindo o setor saúde. Mudanças importantes começaram a acontecer após as eleições municipais de 1992, onde o segundo turno da disputa eleitoral da prefeitura do Rio de Janeiro contou com as chapas da então deputada federal e assistente social Benedita da Silva, do PT, e do médico sanitarista e deputado federal Sérgio Arouca, do PPS, e que hoje dá nome a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) contra Cesar Maia (PMDB) e Gilberto Ramos (PL).
Nesta disputa, Cesar Maia levou a melhor e foi eleito prefeito da cidade, nomeando Ronaldo Luiz Gazolla, médico cirurgião com uma longa trajetória no Hospital Miguel Couto, secretário municipal de saúde, Gazolla permaneceu na gestão municipal por quase uma década, e tendo atuado no primeiro mandato do prefeito Cesar Maia e no mandato do prefeito Luiz Paulo Conde.
Com o êxito da mudança assistencial implementada com o PACS, a necessidade de incorporar novos profissionais, e o acúmulo de experiências locais, como o Programa Médicos de Família desenvolvido no município de Niterói na década anterior, surgiu a proposta do PSF, em 1994. Este programa foi pensado como uma forma de reorganização do SUS, pelo fortalecimento da atenção primária à saúde e o apoio à municipalização das ações e serviços de saúde. Sua implementação foi, prioritariamente, direcionada para as áreas consideradas mais vulneráveis, sendo utilizado o Mapa da Fome, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) para a definição destas áreas prioritárias.
A primeira Equipe de Saúde da Família do município do Rio de Janeiro foi implementada na Ilha de Paquetá, de forma experimental, na época ainda com uma visão de programa verticalizado do Ministério da Saúde e com foco em populações vulneráveis. Ou seja, em um primeiro momento, a implementação do programa na cidade não ia de encontro ao ideal abrangente de atenção à saúde que o PSF se propunha a consolidar nacionalmente, mas isso não era um problema apenas do município do Rio de Janeiro.
Em 1995, a prefeitura recebeu 15 Postos de Atendimento Médico da Previdência Social (PAM) do governo federal, sendo eles: Botafogo, Treze de Maio, Henrique Valadares, Praça da Bandeira, Méier, Del Castilho, Ramos, Penha, Ilha do Governador, Irajá, Madureira, Bangu, Deodoro, Jacarepaguá e Campo Grande, o que fez com que sua rede de atenção básica se expandisse ainda mais, com um aumento da cobertura de ações programáticas (CAMPOS et al., 2016).
As ações de APS realizadas no município eram frequentemente de caráter seletivo, ou seja, com foco em programas do Ministério da Saúde e realização de alguns tipos de ações consideradas “básicas” na saúde, como imunização e distribuição de medicamentos. Ainda que durante a gestão de Gazolla, tenha acontecido uma organização territorial dos serviços de saúde em dez “Áreas Programáticas”, a mesma não evoluiu, não sendo, portanto, uma prioridade da gestão à época. As Áreas Programáticas de Saúde e as Coordenações das Áreas Programáticas (CAPs) representaram uma tentativa de descentralização da administração de serviços de saúde no município (LIMA, 2014).
Em 2001, Cesar Maia (PMDB) foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro, e em meio à negociações entre apoiadores e diversos partidos, Sergio Arouca assumiu a Secretaria Municipal de Saúde, propondo, já em seus primeiros meses de trabalho, um ousado e necessário projeto para a Atenção Básica da cidade.
Já durante a gestão de Eduardo Paes (PSD), a cidade do Rio de Janeiro registrou uma significativa ampliação da Estratégia Saúde da Família (ESF), alcançando uma cobertura de 70%. A ESF, que tem como objetivo promover, prevenir e tratar doenças no âmbito comunitário, é fundamental para a atenção primária à saúde.
O cenário identificado em 2008 era de baixa cobertura dos serviços do primeiro nível de atenção e o menor financiamento municipal entre as capitais do país. Sendo assim, com a implementação de um novo modelo de governança e de suporte administrativo das unidades municipais, iniciou-se a Reforma da Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2009. A gestão, considerando a condição de cidade sede das olimpíadas, realizou uma série de visitas à outras cidades-sede como Londres, Montreal, Barcelona e Sidney, identificando algo em comum entre elas: o sistema de saúde baseado na APS.
Tal situação demonstra que, alinhado às oportunidades desenhadas pelo governo federal e à expectativa da agenda internacional em responder às urgências da saúde, é possível que gestores municipais implementem políticas públicas de saúde capazes de produzir não apenas um legado atrelado às suas respectivas gestões, mas também uma mudança de percepção e centralidade de determinadas políticas que perduram entre gestões.
Ou seja, existe um desafio e uma oportunidade para os futuros prefeitos e gestores na saúde municipal de identificar necessidades da população em uma determinada política, reconhecer oportunidades políticas tanto em nível federal quanto internacional para sua proposição e produzir condições para sua implementação.No caso da gestão de Eduardo Paes, tais políticas foram viabilizadas a partir de parcerias público-privadas e com a ampla terceirização de serviços de saúde e o crescimento de Organizações Sociais à frente da gestão de equipamentos de saúde. Caminho que, embora tenha sido criticado por alguns setores, inegavelmente produziu um salto na cobertura da atenção básica no município.
Cabe pontuar que o modelo foi impulsionado por um conjunto de medidas estratégicas. Entre elas estão: aporte do Governo Federal, contratação de profissionais, ampliação de equipes da ESF para mais comunidades, reforma nas unidades, novos serviços online e ampliação da carteira de serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na rede municipal.
Em 19 de janeiro de 2024, Eduardo Paes, ao lado da ministra da Saúde, Nísia Trindade, recepcionou 218 médicos para a Saúde da Família vinculados ao Programa Mais Médicos para o Brasil. Com a incorporação desses profissionais, a cidade do Rio retomou a marca de 70% de cobertura da população pela Atenção Primária à Saúde.
Esse patamar foi atingido pela primeira vez em 2016, mas caiu para 46% após um período de desestruturação entre 2017 e 2020. Desde 2021, a reestruturação da rede municipal permitiu recuperar o quadro de profissionais e ampliar a ESF com 209 novas equipes.
Esse conjunto de ações fez com que a capital carioca “avançasse algumas casas” no jogo por melhores acessos à saúde pública, proporcionando uma redução significativa das taxas de internação hospitalar por condições sensíveis à atenção primária. Outros resultados positivos também precisam ser considerados: o tempo de espera das filas de consultas, exames e cirurgias diminuíram consideravelmente; a população se beneficiou de um atendimento mais humanizado e eficaz; a otimização dos recursos disponíveis e a parceria com o Governo Federal demonstraram um modelo de gestão eficiente e transparente.
A falta de médicos nas equipes de Saúde da Família, que estava em 31% no início de 2021, reduziu-se para apenas 2% sobre um total de 1.294 equipes, com 2.054 médicos contratados, o maior patamar da história da Atenção Primária à Saúde no município.
É um bom exemplo para analisarmos como políticas progressistas podem ser eficazes na melhoria da saúde pública. A continuidade e a expansão de programas como a ESF são essenciais para garantir que a população tenha acesso a cuidados e saúde de qualidade, principalmente em um país com profundas desigualdades sociais como o Brasil.
Planaltina e Sobral: Os Agentes Comunitários de Saúde e relacionamento com universidades
Se para efetivar políticas públicas de saúde eficazes governos locais precisam lançar mão de inúmeras parcerias estratégicas, não seria possível deixar de mencionar o lugar central de parcerias entre universidades e serviços de saúde para o bom funcionamento do SUS.
São muitas as iniciativas ao longo da história que conformam e qualificaram algumas das principais políticas de saúde existentes hoje e que seguem, diariamente, melhorando o atendimento à saúde de milhares de pessoas e valorizando os profissionais da ponta.
No fim da década de 70, em um período anterior ao próprio SUS, em Sobradinho, no Distrito Federal e Planaltina, em Goiás, experiências em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) produziram frutos que mais tarde se converteriam no que hoje configura-se como um dos profissionais de saúde mais centrais da saúde municipal: o Agente Comunitário de Saúde (ACS). Uma iniciativa envolvendo aUnidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), a partir de estudos de patologias realizados com populações empobrecidas da região, foi percebido, ainda na década de 1970, que doenças e óbitos infantis causados por desnutrição associada a parasitoses e infecções recorrentes necessitava de um olhar e trabalho de prevenção junto às famílias.
Naquele momento, uma experiência foi desenvolvida na cidade de Planaltina, que possuía a maior área rural do Distrito Federal e enfrentava condições sanitárias complexas. A população local, também atendida na UISS, se beneficiou de um centro de saúde dirigido pelo Dr. Átila Carvalho e de um Centro de Desenvolvimento Social coordenado pela assistente social Miria Lavor, que havia participado das atividades em Sobradinho.
O trabalho foi desenvolvido pela UnB, em parceria com as Secretarias de Serviço Social e de Saúde do Distrito Federal, do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) e das Fundações Kellog e Fundação Interamericana. Auxiliares de saúde, precursores dos futuros agentes comunitários de saúde, foram capacitados por profissionais do Serviço Social para atuar junto às famílias. Juntamente com médicos e enfermeiros, eles aprenderam conhecimentos de saúde focados principalmente nas mães e crianças, que passaram a frequentar regularmente os serviços de pré-natal e puericultura. Como resultado, a chegada de crianças à emergência hospitalar diminuiu significativamente, assim como a mortalidade infantil.
Todo esse processo foi liderado por Carlile Lavor, que elaborou a proposta do PACS. Carlile esteve à frente da Secretaria Municipal de Saúde de Sobral, e também da Secretaria Estadual de Saúde (1987- 1988) do Ceará, desencadeando a implantação do SUS no estado e aplicando o experimento do profissional Agente de Saúde em larga escala, com a atuação em campo de 6 mil mulheres no serviço de emergência em atendimento à seca naquele ano. Mais tarde, tornou-se prefeito de Jucás/CE, com uma atuação internacionalmente reconhecida na agenda da Saúde e Educação Básica. Para as próximas eleições, pensar em propostas de valorização dos Agentes Comunitários de Saúde, e do acesso e melhor uso dos equipamentos dos territórios é um desafio, mas também uma oportunidade de efetivar uma estratégia que há décadas se mostra bem-sucedida.
Niterói: A resposta pioneira e radical à pandemia da COVID-19
Em Niterói, a resposta ao impacto do coronavírus foi marcada por medidas rigorosas e proativas, implementadas sob a liderança de Axel Grael e após a gestão de Rodrigo Neves, ambos do PDT. Em março de 2021, antes mesmo da declaração de emergência pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a cidade já havia adotado um conjunto de restrições para conter o vírus. (Veja a linha do tempo das medidas adotadas pela prefeitura)
O decreto municipal 13.938/2021 limitou o funcionamento de bares e restaurantes, proibiu música ao vivo, suspendeu atividades de quiosques de praia e restringiu a permanência em espaços públicos durante a noite. Além disso, incentivou o trabalho remoto para 50% dos funcionários da iniciativa privada e da administração municipal, promovendo o isolamento social.
Mais do que casos isolados, essas experiências comprovam que políticas públicas bem estruturadas e implementadas com compromisso podem fazer a diferença, e principalmente nesse caso, reduzir a taxa de contágio e salvar vidas.
Perspectivas para as eleições de 2024
À medida que o período eleitoral se aproxima, é fundamental que candidatas(os) e partidos políticos reconheçam a importância da saúde pública em suas plataformas. Governos locais devem ser proativos na implementação de políticas que promovam a saúde preventiva, ampliem o acesso aos serviços de saúde e respondam de maneira eficaz a crises sanitárias.
As emendas parlamentares para a saúde, que em outro momento foram comemoradas, têm sido uma preocupação para sanitaristas e pessoas que defendem um SUS que respeite o princípio da equidade. Hoje, 50% das emendas parlamentares são de destinação obrigatória para a saúde. O que deveria ser bom, na prática acaba por produzir desigualdade sanitária entre os municípios, submetendo a população à lógica dos redutos eleitorais de deputados e senadores. Além disso, as emendas estão servindo como uma substituição ao gasto municipal com APS, a área estruturante do SUS. Ou seja, serviços básicos de saúde que atendem a maioria da população serão, mais que nunca, associados ao trabalho de parlamentares.
Em ano eleitoral, a falta de compreensão de como ocorre o financiamento do SUS, associada a uma constante precarização de serviços, irá permitir que parlamentares, agora candidatos ou cabos eleitorais, se beneficiem de pequenas melhorias realizadas nos serviços de saúde locais. Nesse sentido, produzir o acesso à informação ao eleitor sobre a maneira que se dá o funcionamento do SUS, bem como a forma que os recursos federais da saúde são traduzidos em políticas nos territórios também se torna tarefa das novas candidaturas progressistas nas cidades do Brasil.
As próximas administrações municipais terão a oportunidade de aprender com experiências como as da cidade do Rio de Janeiro, Niterói, Planaltina, Sobral, entre outras, e adaptar as melhores práticas às necessidades específicas de suas comunidades. É essencial que a saúde pública seja tratada como uma prioridade absoluta, garantindo que todos os cidadãos tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade, assim como previsto em nossa constituição.
artigo publicado no portal Outra Saúde
10 jun 2024
Saúde
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