Desafios e perspectivas para a educação antirracista no Brasil

Experiências em seis municípios revelam caminhos para efetivação da Lei 10.639/03 e o combate ao racismo estrutural.

Em 2023, a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica, completou duas décadas de existência. Apesar de ser um marco legal fundamental, sua aplicação ainda apresenta uma série de desafios em diferentes regiões do Brasil.

Para destacar as práticas que impulsionam a efetividade da lei, o Geledés Instituto da Mulher Negra e o Instituto Alana uniram esforços na pesquisa “Experiências de Seis Municípios no Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira”. A iniciativa mapeou boas práticas em seis cidades de forma a inspirar caminhos possíveis para os tomadores de decisão, são elas: Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR).

Experiências em seis municípios revelam caminhos para efetivação da Lei 10.639/03 e o combate ao racismo estrutural

A escolha também se deu pelas cidades representarem realidades diversas. Esses seis municípios têm gestões com diferentes níveis de maturidade em suas ações, algumas já implementando iniciativas há mais tempo do que outras. Alguns têm equipes dedicadas às estratégias da lei, enquanto outros não; dentre outros fatores distintivos.

Pilares para a efetividade da lei

Coordenadoria especializada: Belém, com sua Coordenadoria da Educação para as Relações Étnico-Raciais (CODERER), oferece um modelo de referência para a gestão e acompanhamento da lei na rede municipal. A CODERER coordena ações, oferece formação continuada aos professores, elabora materiais didáticos específicos e acompanha de perto o desenvolvimento das práticas nas escolas. Além do mais a CODERER estabelece muitas parcerias, inclusive com a Universidade Federal do Pará (UFPA), para o desenvolvimento de projetos pedagógicos interdisciplinares, decoloniais e antirracistas.

Aumento da presença de autores negros nos livros literários: Em Belém, a rede ampliou a presença de autores negros não só nos materiais de sala de aula como também nas bibliotecas, estabelecendo a necessidade de pelo menos cinco cópias de cada título selecionado para equipar as bibliotecas. Em Ibitiara os estudantes do ensino fundamental são introduzidos ao trabalho com autores e personalidades negras: o foco está em explorar como as questões de denúncia podem ser abordadas através da literatura.

Dinamizador da rede: Em Cabo Frio, um professor é selecionado anualmente para liderar as ações de educação antirracista como “dinamizador de rede”. A maioria dos dinamizadores tem sido pessoas negras, e eles trabalham em conjunto com um trio de assessoramento pedagógico, abordando orientação, supervisão e inspeção escolar.

Formação continuada e troca de boas práticas: Criciúma investe em diferentes formatos de formação para manter os professores atualizados e engajados, como cursos, workshops, palestras e seminários. Adicionalmente, as escolas da rede possuem uma planilha para registrar as ações em andamento e planejadas para o ano, as quais devem ser compartilhadas com a coordenadora do Programa Municipal de Educação para Diversidade Étnico-Racial. Este setor oferece suporte às unidades escolares e orienta a agenda étnico-racial dentro da rede.

Materiais didáticos contextualizados: Cabo Frio e Londrina desenvolvem materiais que aproximam os alunos da temática e valorizam a cultura afro-brasileira local, incluindo livros didáticos, apostilas, jogos educativos e recursos audiovisuais.

Integração curricular: Diadema e Ibitiara integram a temática afro-brasileira ao currículo de forma transversal, promovendo uma educação antirracista abrangente. Isso se dá através da inclusão de conteúdos específicos nas diferentes disciplinas, projetos interdisciplinares e atividades extracurriculares. Já Criciúma estabelecer no planejamento dos professores, no mínimo, duas atividades por trimestre que envolvam o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Por sua vez, Londrina se destaca pelo trabalho realizado em rede, envolvendo diferentes atores e áreas para além da educação, como cultura, meio ambiente, justiça, entre outros.

Metas de curto, médio e longo prazo: Diadema lançou o Plano Municipal Decenal de Promoção da Igualdade Racial com metas para os próximos dez anos. O plano abrange diversos eixos de atuação e promove a integração entre diferentes secretarias. Na área da educação, os objetivos de curto prazo incluem oferecer formações continuadas e ações formativas com enfoque étnico-racial, além da aquisição de materiais didáticos sobre o tema para as escolas.

Diversidade de programas: Em Diadema, além de programas específicos para o cumprimento da lei 10.639 03, há o apoio a outros projetos voltados para a educação étnico-racial, tais como o Programa Adolescente Aprendiz e o Programa Mais Educação.

Ampliação de narrativas: Em Ibitiara há a ênfase em se desfazer de uma narrativa limitada sobre a África, que retrata os negros unicamente como pessoas escravizadas. Busca-se valorizar a identidade negra, permitindo que os estudantes se identifiquem como pessoas negras sem estereótipos negativos. Isso inclui reconhecer as diversas etnias que contribuíram para a formação do país, valorizando a cultura africana e afro-brasileira.

Mobilização da comunidade: Ibitiara conta com a participação ativa da comunidade negra na construção de projetos de valorização da identidade afro-brasileira. A comunidade participa da elaboração do currículo, da escolha de materiais didáticos e da organização de eventos culturais.

Participação do Movimento Negro: Em Londrina, o Movimento Negro colabora com a secretaria municipal para assegurar que as equipes estejam engajadas. As unidades escolares adotam um sistema de rodízio de professores nas comissões de diversidade nas escolas, permitindo que todos participem das formações temáticas.

As experiências mapeadas pelo estudo revelam resultados animadores, como o aumento do conhecimento dos professores, a melhora da qualidade do ensino, a redução da evasão escolar entre alunos negros e o aumento da autoestima. No entanto, ainda há desafios a serem superados, como a falta de recursos financeiros, a resistência de alguns professores e a falta de conhecimento da comunidade sobre a importância da lei.

Desafios persistentes

Apesar dos avanços, ainda há desafios a serem superados para a plena implementação da Lei 10.639/03, como:

  • Falta de recursos financeiros: muitos municípios não têm recursos suficientes para investir em formação continuada, materiais didáticos e infraestrutura adequada.
  • Falta de formação: Profissionais de educação enfrentam uma lacuna na formação durante a graduação em relação à Lei 10.639/03, além da escassez de cursos de formação continuada sobre o tema. Esta deficiência afeta toda a comunidade escolar, incluindo educadores, pais, alunos e funcionários.
  • Resistência da comunidade escolar: alguns ainda não reconhecem a importância da lei e alguns professores não se sentem preparados para abordar a temática afro-brasileira em sala de aula.
  • Falta de conhecimento da comunidade sobre a importância da lei: muitas famílias ainda não sabem da existência da lei ou não compreendem sua importância para a educação de seus filhos.
  • Intolerância Religiosa: a intolerância religiosa é um dos principais desafios para abordar questões étnico-raciais nas escolas. Essa resistência é particularmente evidente entre os familiares dos estudantes, principalmente em regiões com forte presença de comunidades evangélicas. 

Um chamado à ação

Ampliando o debate, o estudo ultrapassa o mapeamento de práticas bem-sucedidas. O Brasil carrega a herança dolorosa do período escravocrata, que deixou marcas profundas na estrutura social. O racismo estrutural permeia a vida cotidiana, desde o acesso à educação e saúde até as oportunidades no mercado de trabalho. A lei surge como um instrumento legal fundamental para combater o racismo e valorizar a diversidade cultural brasileira, buscando romper com narrativas eurocêntricas e formar cidadãos conscientes de sua história e comprometidos com a equidade racial.

Além do mapeamento realizado pelo Geledés e do Instituto Alana, o material também oferece subsídios valiosos para superar os desafios identificados, como o fortalecimento da formação continuada, investimentos em recursos didáticos, articulação escola-comunidade e sensibilização da sociedade. A implementação efetiva da lei pressupõe um compromisso coletivo.

Ao disseminar práticas exitosas e apontar caminhos para a superação dos desafios, o estudo contribui para a construção de uma educação para a cidadania plena, onde todos os estudantes, independentemente de raça ou origem, possam se desenvolver e alcançar seu potencial.